"Desnazificação" e reconstrução
especial para a Folha de São Paulo
O desafio para a crítica é máximo quando se trata de falar
de uma poesia cuja essência está em concentrar a tal ponto sua
matéria verbal que, no caso limite, uma única palavra ocupando
a superfície virgem de uma página inteira ser-lhe-ia suficiente.
Ainda assim, há uma vertente pela qual a poesia concreta talvez se deixe
apreender pela crítica de maneira vívida e sintética, de
modo a mostrar objetivamente como essa poesia ainda hoje, há 40 anos
de seu nascimento, permanece um fenômeno vivo, diretamente perceptível,
sem necessidade de intermediários sociais, culturais ou históricos.
Essa vertente é, em uma palavra, a da responsabilidade. (...)
Historicamente, a poesia concreta nasce como denominação e como
movimento na República Federal da Alemanha, mais precisamente em Ulm,
na Escola Superior de Estética Industrial (a Hochschule für Gestaltung),
em novembro de 1955, dez anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em plena
fase dita de reconstrução. Ela nasce do encontro de um poeta suíço-boliviano,
Eugen Gomringer (cuja primeira coletânea, "konstellationen constelations
constelaciones'', fora publicada em 1953, em Berna, e cujo primeiro manifesto
teórico aparece na "Neue Zürcher Zeitung'' de 1º de agosto de 1954),
com um membro do grupo "Noigandres'' (criado em 1952 em São Paulo),
o poeta brasileiro Décio Pignatari, que então viajava pela Europa
a fim de estabelecer contato com artistas, poetas e músicos envolvidos
em pesquisas experimentais.
Esse encontro assenta os fundamentos de um movimento que nascerá oficialmente
em 1956, estendendo-se rapidamente pelo mundo (para grande espanto de seus iniciadores)
e funcionando como divisor de águas.
Esse ato de fundação é em si mesmo portador de sentido
histórico. Primeiramente por ter lugar na Alemanha, por obra de dois
estrangeiros, e numa cidade castigada pela guerra, em lenta reconstrução;
os futuros poetas concretos alemães rapidamente sentem-se atraídos
pelo movimento e logo se associam àquele esforço de reconstrução
empreendido por dois estrangeiros; como dirá Helmut Heienbüttel,
viram nele uma "liberação'', uma possibilidade de "fazer o que
queríamos fazer''. Claus Bremer, por sua vez, não hesitará
em compreender seu trabalho de poeta concreto como uma "desnazificação
poética''.
Em segundo lugar, o movimento nasce numa escola que não era absolutamente
neutra. Desde sua concepção e fundação por Inge
Aicher-Scholl (irmã dos resistentes antinazistas da Rosa Branca, executados
em 1943) até sua instalação definitiva, projetada pelo
arquiteto e artista concreto suíço Max Bill, a escola é
um símbolo de integridade moral e engajamento construtivo na Alemanha
do pós-guerra. Ela se apresenta claramente como uma escola superior de
educação democrática num país que, afinal de contas,
jamais o foi.
Sua intenção é a de ser um ponto de junção
entre passado e presente, entre um passado reprimido arbitrariamente pela história,
quando do episódio nacional-socialista e um presente que porta ainda
os estigmas reais dessa história, um presente que urge construir segundo
uma moral irrepreensível. (...)
Uma vez que o solipsismo literário não constitui mais a norma
inescapável, o poeta concreto deve encontrar uma forma responsável,
que o será justamente por sua utilidade para a comunidade humana e por
sua integração no mundo contemporâneo. Para tanto, o poeta
concreto toma por modelo a modernidade e o progresso que se manifestam nas ciências
e nas técnicas industriais contemporâneas. Ele se convence de que
só dessa maneira poderá encontrar a linguagem poética adequada
à sua época. Segundo uma fórmula de Gomringer, trata-se
de "procurar e encontrar a poesia da era da revolução industrial
atual'' (...).
Recusando-se a reverter, no plano da expressão poética, à
ditadura do "eu'', o poeta pode visar a (mais uma vez segundo uma fórmula
de Gomringer) "fazer uma poesia que possa ser pensada universalmente, destinada
a ser empregada por todo o mundo''. A um culto desabrido e auto-suficiente do
"eu'' deve-se opor um engajamento moral a serviço da coletividade. Uma
poesia feita para todos, funcional, utilizável, uma "poesia comunitária
universal'' (Gomringer) — eis aí o que a poesia concreta tem a
oferecer como penhor de engajamento responsável na modernidade.
O poeta não pode mais ser aquele indivíduo solitário, que
do alto de sua torre de marfim proclama ao mundo suas desesperadoras verdades
universais -verdades que, afinal de contas, não dizem respeito senão
a ele mesmo e a um punhado de fiéis ou eleitos obstinados na tarefa de
decifrar a mensagem criptografada do mestre. (...)
O poeta concreto, por sua vez, deve propor à sociedade uma poesia que
simultaneamente dê conta da evolução do tempo presente e
seja verdadeiramente funcional, isso é, útil para seus contemporâneos.
Longe de se imaginar numa torre de marfim, ele se imagina como que na torre
de comando de um aeroporto, de onde pode não somente observar o mundo
contemporâneo como também ser responsável por seu bom funcionamento.
Aí, longe de estar só, ele está cercado por toda uma equipe
de indivíduos autônomos e entretanto solidários, trabalhando
juntos na construção da sociedade hodierna. (...)
Em 1956, Augusto de Campos definia a poesia concreta da seguinte maneira: "A
poesia concreta começa por assumir uma responsabilidade total face à
língua: aceitando o pressuposto do idioma histórico como nó
indispensável da comunicação, ela se recusa a absorver
as palavras como simples veículos indiferentes, sem vida, sem personalidade,
sem história''. Esta citação permite compreender claramente
o que se deve entender por responsabilidade da poesia concreta diante da linguagem.
O poeta concreto não cria uma língua nova a partir do nada. Ele
se serve da língua tal como lhe é dada. Seu objetivo não
é o de criar uma língua artificial, sem contexto ou referência
à história, à vivência da língua.
Seu objetivo é o de instaurar um novo olhar sobre todas as línguas,
uma espécie de olhar crítico permanente que permita captar a quintessência
da linguagem. Se criasse uma nova língua, ele não poderia assumir
nenhuma responsabilidade perante a sua língua e a sua história.
Ora, é precisamente isso que urge fazer. (...)
O objetivo final é o de encontrar um instrumento poético graças
ao qual a linguagem possa mostrar-se como o que é, sem artifícios,
bruta, nua, aberta, mas igualmente em toda a sua integralidade verbal —
em suma, um instrumento por meio do qual a linguagem possa mostrar-se concretamente,
aberta a uma interrogação sem termo aprioristicamente dado. (...)
O poeta concretista distancia a linguagem, torna-a objeto, um objeto a ser observado,
ele a exibe no espaço visual da página. Numa palavra, ele a visualiza.
Essa visualização da linguagem é uma maneira de fazer eco
às diferentes tendências de visualização em curso
no mundo contemporâneo. Mas a visualização da linguagem
é também um modo privilegiado de democratizar a poesia, de torná-la
acessível a todos.
Finalmente, a visualização transporta a linguagem para uma outra
dimensão, a da reflexividade permanente, na qual a linguagem acaba por
interrogar a si mesma. Tornada objeto de mediação, a linguagem
basta-se a si mesma e não tem necessidade de qualquer referência
fora de si mesma. Ela se apresenta liberta de qualquer contexto externo a si
mesma. Ela é seu próprio contexto. Esse "minimalismo verbal do
poema como objeto'' (fórmula de Décio Pignatari) institui uma
autêntica ruptura com o sistema linguístico e poético tradicional.
(...)
A poesia concreta desfuncionaliza a linguagem. Por quê? Para funcionalizar
a poesia, para tornar a poesia verdadeiramente funcional. Quem deve se encarregar
dessa funcionalização? Quem deve fazer funcionar a poesia? O leitor,
evidentemente, com todos os riscos e perigos, mas em inteira liberdade.
A poesia concreta tem função heurística. Ela serve de instrumento
de conhecimento para o indivíduo que a enfrenta com todas as suas faculdades
de percepção. Pois o que está em jogo na poesia concreta
é justamente a percepção. Como vemos o que vemos? Como
entendemos o que entendemos? Como entendemos o que vemos? Como vemos o que entendemos?
São estas as questões que confrontam a poesia concreta. O verdadeiro
sujeito dessa poesia é o leitor, o homem que vê a si mesmo na obra,
o homem que se esforça por descobrir aquilo que o constitui mais intrinsecamente:
sua consciência. Abrindo-se para a obra, ele se abre a si mesmo. Conferir
sentido à obra implica conferir sentido a si mesmo.
Se a poesia concreta não pode responder por seu leitor, não sabendo
de antemão o que ele fará da obra, esse leitor, por sua vez, pode
responder por ela. Ele pode, com inteira liberdade, engajar-se na responsabilidade
diante dessa linguagem-objeto que lhe é proposta e da qual pode dispor
conforme seu arbítrio. Na poesia concreta, o autoritarismo e o dirigismo
definitivamente não têm lugar. Nesse sentido, a poesia concreta
é uma poesia em que as responsabilidades são partilhadas. A poesia
concreta não é simplesmente uma poesia engajada, ela é
uma poesia engajante.
Philippe Buschinger
germanista, autor "A Poesia Concreta nos Países de Língua Alemã — Elementos de uma Definição'', tese de doutorado na Sorbonne, publicada na Alemanha este ano pela Verlag Hans-Dieter Heinz.
O texto acima é uma versão resumida de um ensaio maior publicado na revista "Semiosis'', nº 81/82.
in :
Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 08.12.96
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